Por que os pastores ainda evitam atravessar os trilhos perto do glaciar Morteratsch

Localizado nos Alpes suíços, na região de Bernina, o glaciar Morteratsch é um dos mais emblemáticos e acessíveis da Suíça. Com seus quase sete quilômetros de extensão, ele atrai turistas, alpinistas e cientistas, encantados tanto pela sua imponência quanto pelas evidências visíveis do recuo do gelo ao longo dos anos. A paisagem ao redor é marcada por trilhas bem cuidadas, rios glaciais e vales que parecem saídos de um cartão-postal. No entanto, apesar de toda essa beleza e estrutura, há um elemento local que chama atenção de forma discreta, mas constante.

Ao longo das últimas décadas, moradores e visitantes mais atentos notaram um hábito peculiar entre os pastores da região: muitos deles evitam atravessar certos trilhos que passam próximos ao glaciar. Mesmo quando isso significa percorrer caminhos mais longos ou difíceis, a escolha é feita quase instintivamente, como parte de uma tradição silenciosa. Trata-se de um comportamento transmitido entre gerações, respeitado com naturalidade, mas raramente explicado em voz alta.

Esse padrão de comportamento desperta a curiosidade de quem visita ou estuda a região. Afinal, o que faz com que essas pessoas, profundamente conectadas à terra e ao ambiente, continuem evitando certos caminhos nos arredores do glaciar Morteratsch? Estaríamos diante de um antigo costume baseado em mitos locais? Ou há razões práticas, talvez até científicas, por trás dessa escolha aparentemente irracional? Neste artigo, vamos explorar as possíveis origens dessa tradição, seus significados e as interpretações que ainda hoje cercam essa decisão enigmática dos pastores alpinos.

Contexto histórico

Breve história do glaciar Morteratsch

O glaciar Morteratsch é um dos mais estudados da Europa, não apenas por sua grandiosidade, mas também por ser um símbolo das mudanças climáticas ao longo dos séculos. Situado na região de Engadina, no cantão de Grisões, ele foi nomeado a partir do vale que percorre — Morteratsch — e sua história documentada começa no século XIX, quando exploradores e geógrafos passaram a registrar sua extensão e variações. Durante a Pequena Era do Gelo (aproximadamente entre os séculos XIV e XIX), o glaciar avançou significativamente, chegando a ameaçar pequenas construções locais. Desde então, vem recuando de forma acelerada, perdendo centenas de metros a cada década. Esse cenário de transformação constante faz do Morteratsch não apenas uma atração natural, mas também um alerta silencioso da fragilidade dos ecossistemas alpinos.

A tradição do pastoreio na região alpina

Muito antes da chegada dos turistas ou dos alpinistas modernos, a região ao redor do glaciar Morteratsch era lar de comunidades pastoris que tiravam seu sustento da criação de cabras, ovelhas e gado. O pastoreio nas montanhas suíças tem raízes que remontam à Idade Média, com famílias se estabelecendo nos vales e aproveitando os pastos sazonais durante o verão. Os pastores conhecem o terreno como poucos, guiando seus rebanhos por trilhas seguras e observando sinais da natureza que muitas vezes escapam ao olhar urbano. Suas rotas são moldadas não apenas pela geografia, mas também por séculos de experiência oral transmitida entre gerações — incluindo alertas sobre locais a evitar.

Primeiros relatos de incidentes ou eventos estranhos na área

Embora os documentos históricos oficiais não tragam grandes catástrofes associadas ao glaciar Morteratsch, registros orais e relatos locais apontam para uma série de eventos curiosos e, em alguns casos, inexplicáveis. Há histórias antigas de rebanhos que desapareceram ao se aproximarem demais do gelo, ou de pastores que afirmavam ouvir ruídos subterrâneos e vozes ecoando entre as pedras nos dias de neblina. Em tempos mais recentes, houve casos isolados de afundamentos repentinos em trilhos sobre áreas glaciares instáveis — fenômenos naturais que, à época, eram interpretados com temor e mistério. Esses episódios, embora raros, foram suficientes para alimentar um senso coletivo de respeito e cautela, que persiste até hoje entre os pastores da região.

Os trilhos próximos ao glaciar

Descrição dos trilhos (trilhas de caminhada ou ferroviários, conforme o contexto local)

A região ao redor do glaciar Morteratsch é cruzada por dois tipos principais de trilhos: as trilhas de caminhada e os trilhos ferroviários da linha Bernina, famosa por ser uma das mais cênicas do mundo. As trilhas de caminhada são bem demarcadas, ligando o vilarejo de Morteratsch a diversos pontos de observação do glaciar. São rotas utilizadas tanto por turistas quanto por moradores locais, especialmente durante o verão, quando os rebanhos sobem às pastagens alpinas. Já os trilhos ferroviários pertencem à histórica ferrovia Rhaetian Railway (RhB), que passa a poucos metros da frente glacial. A linha Bernina, que conecta St. Moritz a Tirano, na Itália, é patrimônio mundial da UNESCO e leva milhares de visitantes por paisagens alpinas de tirar o fôlego.

Importância dos trilhos para a região (turismo, transporte, etc.)

Esses trilhos representam muito mais do que simples caminhos. As trilhas de caminhada sustentam o turismo de natureza, que é essencial para a economia local, especialmente em épocas fora da temporada de esqui. Já os trilhos ferroviários servem como uma artéria vital para o transporte sustentável na região, ligando comunidades alpinas remotas e oferecendo uma alternativa ecológica ao uso de automóveis. A ferrovia também é uma vitrine para o glaciar — de dentro do vagão panorâmico, visitantes têm uma visão única da geleira e de sua paisagem em constante mutação. Além disso, os trilhos facilitam o acesso de pesquisadores e técnicos ambientais, que monitoram a evolução do glaciar ano após ano.

Casos ou lendas associados à travessia

Apesar da aparente tranquilidade da região, há um pano de fundo mais sombrio envolvendo certos trechos próximos ao glaciar. Entre os moradores mais antigos, circulam histórias de animais que se recusam a passar por determinados pontos das trilhas — e de pastores que afirmam sentir uma “presença pesada” ao atravessar áreas específicas, especialmente ao entardecer ou em dias de neblina. Há relatos não oficiais de pessoas que desapareceram temporariamente, desorientadas por mudanças repentinas no clima ou pelas emanações de ar quente vindas de fendas sob o gelo, fenômenos naturais, mas que alimentam a aura de mistério. Uma das lendas mais antigas conta sobre um pastor que teria ouvido cantos vindos de dentro da geleira, e que, ao tentar investigar, nunca mais foi visto. Essas narrativas, mesmo sem comprovação concreta, reforçam o cuidado — quase ritual — que muitos locais mantêm ao atravessar os trilhos perto do glaciar.

Crenças locais e lendas

Relatos de pastores antigos

Entre os pastores mais velhos da região de Morteratsch, há uma sabedoria silenciosa passada de geração em geração. Muitos deles cresceram ouvindo advertências dos pais e avós: “Evite os trilhos perto do gelo ao entardecer”, “Não caminhe sozinho depois da névoa descer”. Esses conselhos, embora simples, carregam um peso cultural. Os pastores contam que, em certas épocas do ano, principalmente na transição do verão para o outono, é possível ouvir sons estranhos ecoando do glaciar — ruídos que se parecem com vozes distantes, lamentos ou cantos. Alguns descrevem a sensação de serem observados ao passar por certos pontos, mesmo quando não há ninguém por perto. Embora poucos falem abertamente sobre isso, muitos preferem mudar o trajeto a arriscar atravessar áreas que “não inspiram confiança”.

Lendas alpinas envolvendo o glaciar ou os trilhos

Como muitas regiões montanhosas da Europa, os Alpes suíços são ricos em folclore. No caso de Morteratsch, uma das lendas mais conhecidas é a da “Noiva de Gelo”. Conta-se que uma jovem prometida, desesperada pela ausência do amado que partiu para a guerra, teria subido até o glaciar em busca dele. Nunca mais foi vista, e diz-se que sua alma ainda vagueia pelas encostas congeladas, atraindo os desavisados com sua voz suave. Em noites silenciosas, pastores afirmam ouvir o chamado dela entre o vento. Outra lenda fala de espíritos antigos, guardiões do gelo, que punem aqueles que desrespeitam os caminhos sagrados da montanha — especialmente os trilhos onde ocorreram antigos deslizamentos ou mortes.

Presença de mitos sobre segurança, desaparecimentos ou “presenças”

Além das lendas tradicionais, há também uma série de mitos mais recentes ligados à segurança. Um dos mais recorrentes é o de “buracos invisíveis” — trechos aparentemente firmes da trilha que, sob certas condições, afundam ou cedem, engolindo pés, bastões de caminhada ou até pequenos animais. Embora isso possa ser explicado por cavidades formadas sob a neve ou pelo derretimento do permafrost, muitos atribuem esses incidentes a forças invisíveis que “avisam” os intrusos. Há também histórias de turistas que se sentiram subitamente desorientados ou paralisados por um medo inexplicável ao caminhar por determinadas áreas. Esses relatos reforçam a crença local de que o glaciar tem sua própria consciência — e que ele se manifesta, de forma sutil, para proteger ou afastar os que não o respeitam.

Explicações práticas e científicas

Mudanças climáticas e riscos atuais (fissuras no gelo, instabilidade do solo, avalanches)

O glaciar Morteratsch, assim como muitos outros ao redor do mundo, está sofrendo os efeitos visíveis do aquecimento global. O recuo acelerado do gelo tem causado o aparecimento de fissuras profundas e instabilidade no solo ao seu redor. Essas fissuras, muitas vezes cobertas por camadas frágeis de neve ou gelo fino, representam um perigo real para quem se aventura nos trilhos próximos. Além disso, o derretimento intenso pode provocar deslizamentos repentinos e avalanches, que transformam áreas antes consideradas seguras em zonas de risco. Esse cenário exige cuidado constante e explica parte da prudência histórica dos pastores, que conhecem melhor do que ninguém os sinais de instabilidade na montanha.

Sinais físicos que levam ao comportamento evitativo (sons do gelo, vapor, etc.)

É comum, especialmente em períodos de transição climática, ouvir ruídos estranhos vindos do glaciar — estalos, rangidos, ou mesmo um som semelhante a uma “respiração” profunda e lenta. Esses sons são causados pelo movimento do gelo, pela liberação de bolhas de ar e pela água que escorre por fendas internas. Além disso, em certos momentos, o vapor que sobe de fissuras pode criar neblinas súbitas e úmidas, dificultando a visibilidade e criando uma atmosfera misteriosa. Os pastores, experientes no terreno, reconhecem esses sinais como indicativos de instabilidade e perigo iminente, o que reforça seu hábito de evitar trilhos específicos próximos ao glaciar.

Perigos reais versus percepções culturais

Enquanto os riscos físicos e geológicos são inegáveis, a forma como eles são percebidos e interpretados pela comunidade local é profundamente influenciada por crenças e tradições culturais. A fusão entre explicações científicas e narrativas folclóricas cria um conjunto de advertências que vão além do mero medo do perigo físico. Essa combinação mantém viva uma cultura de respeito e cautela, que para muitos representa não apenas segurança, mas também uma conexão espiritual com o ambiente. Assim, o comportamento evitativo dos pastores pode ser visto como uma síntese entre sabedoria prática e mitos ancestrais, garantindo que a experiência humana nas montanhas seja sempre pautada pela prudência e pelo respeito ao desconhecido.

A persistência do comportamento

Por que os pastores ainda seguem essa tradição

Mesmo com o avanço da tecnologia, mapas detalhados e informações modernas sobre segurança, muitos pastores da região de Morteratsch continuam evitando atravessar certos trilhos próximos ao glaciar. Essa persistência não é apenas uma questão de hábito, mas de respeito a uma tradição que preserva a vida e a integridade do rebanho. O conhecimento acumulado ao longo de gerações funciona como um guia prático, refletindo a experiência direta com o terreno e seus riscos invisíveis. Para esses pastores, seguir essa prática é uma forma segura e sensata de atuar em um ambiente que, apesar da aparência calma, pode esconder perigos reais.

Papel da oralidade e da sabedoria local

A transmissão oral é a base da cultura pastoral nos Alpes. Sem muitos registros escritos, a sabedoria local circula através de histórias, conselhos e advertências compartilhadas em conversas, reuniões e momentos cotidianos. Essa oralidade garante que o conhecimento sobre o comportamento dos animais, mudanças no terreno e sinais de alerta seja passado de pai para filho, criando uma rede de aprendizado contínuo. Por isso, o costume de evitar os trilhos perigosos permanece vivo, mesmo entre as novas gerações, fortalecendo um vínculo profundo entre o homem, a natureza e o tempo.

Relação com o respeito à natureza e à montanha

Mais do que simples precaução, a escolha dos pastores de evitar determinados caminhos reflete um respeito intrínseco pela natureza e pela montanha que os cerca. Para eles, o ambiente alpino não é apenas um espaço físico, mas um ser vivo que merece reverência e cuidado. Essa relação de respeito impede o desrespeito aos sinais da terra, reconhecendo que o equilíbrio ambiental pode ser frágil e imprevisível. Assim, a tradição de evitar os trilhos perigosos perto do glaciar Morteratsch funciona como um elo simbólico entre o homem e a natureza, onde prudência e humildade caminham lado a lado.

O fascínio por Morteratsch

Atração turística e curiosidade crescente

O glaciar Morteratsch atrai cada vez mais visitantes do mundo todo, fascinados por sua imponente beleza e pelas histórias que cercam a região. A facilidade de acesso, combinada com trilhas bem estruturadas e a proximidade com a linha ferroviária Bernina, faz do local um destino imperdível para amantes da natureza, fotógrafos e aventureiros. Essa curiosidade crescente também vem acompanhada do desejo de entender mais sobre o ambiente glacial e as tradições locais, incluindo os mistérios que envolvem o comportamento dos pastores. O turismo, portanto, é um motor importante para a economia regional e uma oportunidade para valorizar a cultura e a história alpinas.

O que os visitantes devem saber antes de explorar a área

Para quem deseja explorar as trilhas próximas ao glaciar Morteratsch, é fundamental estar bem informado sobre as condições do terreno e as recomendações locais. O clima pode mudar rapidamente, e algumas áreas próximas ao gelo apresentam riscos ocultos, como fissuras e instabilidades. É essencial seguir as placas de sinalização, respeitar as rotas indicadas e evitar passar por trechos que são tradicionalmente evitados pelos pastores. Equipar-se com roupas adequadas, calçados apropriados e, se possível, contar com guias locais, pode fazer toda a diferença para uma experiência segura e prazerosa.

A importância de respeitar as tradições e alertas locais

Respeitar as tradições e os alertas dos moradores é mais do que uma questão de segurança; é um gesto de valorização da cultura e do conhecimento ancestral que envolve o glaciar Morteratsch. Os conselhos dos pastores e da comunidade não são baseados em superstição, mas em uma relação profunda com a terra e suas nuances. Ignorar essas orientações pode colocar em risco não apenas a segurança pessoal, mas também o equilíbrio ambiental e a preservação das histórias que tornam a região tão especial. Assim, visitantes conscientes contribuem para manter viva essa rica herança cultural e natural.

Conclusão

A história dos pastores que evitam atravessar os trilhos perto do glaciar Morteratsch é uma fascinante combinação entre tradição, segurança prática e um certo mistério que envolve o ambiente natural. Essa prática, que pode parecer curiosa à primeira vista, reflete um equilíbrio delicado entre o respeito às antigas crenças, o conhecimento do terreno e a cautela diante dos perigos reais da montanha e do gelo em constante transformação.

Mais do que simples superstição, o comportamento dos pastores é um exemplo vivo do valor do conhecimento tradicional, construído e transmitido ao longo de gerações. Essa sabedoria local, que une observação atenta, experiência prática e uma relação espiritual com a natureza, é um patrimônio que merece ser reconhecido e preservado. Em tempos de mudanças rápidas e avanço tecnológico, lembrar dessa conexão profunda com o ambiente é fundamental para uma convivência mais harmoniosa e sustentável.

Por fim, ao visitar o glaciar Morteratsch e seus arredores, é importante que turistas e exploradores façam isso com respeito — pelas pessoas, pela cultura local e pela própria natureza. Observar as tradições, ouvir os conselhos dos moradores e agir com responsabilidade são atitudes que enriquecem a experiência e ajudam a preservar esse cenário único para as futuras gerações. Que o mistério dos pastores e o esplendor do glaciar inspirem não apenas admiração, mas também um compromisso consciente com a proteção e o respeito à montanha.